Instituto Histórico IMPHIC - Betim

"Sapire ut protego, Protego ut conservo"

Prossigo como planejado em direção a Capela Nova. Os milharais e o mato são atravessados de novo, e sigo a estrada principal, e que, agora bem ampla, não pode ser confundida. O terreno eleva-se cada vez mais, seguindo uma longa cadeia de montanhas, com vales profundos e largos de floresta e matagal de cada lado, em cujos recessos vêem se muitas silhuetas dentadas de serras, sendo os picos dos Três Irmãos sempre conspícuos por seus cimos em pináculo. Capela Nova do Betim é avistada muito antes que eu a alcance. Sua longa rua de casas brancas e telhas vermelhas fica situada proeminentemente sobre um morro alto, cercado de vales fundos e de morros mais altos e cadeias de montanhas. A estrada desce da região alta que eu tinha atravessado, cruza um vale e sobe por uma ladeira larga e íngreme, com casas separadas, casebres e ranchos de cada lado. Chegando ao topo, ela se une a outra rua em ângulo reto, ou melhor, a uma longa praça aberta, com filas de casas de porta e janela amontoadas e uma igreja simples, caiada, em uma extremidade.



Ha diversas vendas e armazéns de secos e molhados e ranchos abertos para tropas de mula. Em todos os espaços abertos há manchas de capim e mato rasteiro, onde foram jogados toras de madeira, pilhas de pedras ou pedras trabalhadas para construções que jamais serão terminadas. Uns poucos matutos, em seus matungos esquálidos, montados com seus dedões do pé enfiados em pequenos estribos e usando o inevitável poncho de baeta ou tecido azul listrado de vermelho; umas poucas mulheres negras ou mulatas vestidas com saias de algodão e xales espalhafatosos e batas brancas, apregoando frutas ou doces em tabuleiros de porta em porta; uns poucos vadios nas vendas e armazéns; algumas cabeças nas janelas assistindo apáticas a cena para a qual passam diariamente horas olhando e os numerosos porcos, bodes, cachorros, galinhas, perus e galinhas d'angola da rua constituem a restrita vida presente nesta vila sonolenta.

Indicam-me uma casa grande e nova perto da junção da rua com a praça, construída em alinhamento com as casas adjacentes; ela ainda não foi caiada, e suas paredes nuas, marrons do reboco seco, parecem tudo menos confortáveis. Ha três janelas sem vidraça e uma porta ocupando a fachada; uma cerca do lado encerra um longo amontoado em desordem de arvores frutíferas, mato e sarça, e se estende por uma boa extensão pelo vale lá atrás. Dentro, umas poucas escrivaninhas e mesas e cadeiras foram feitas ou tomadas de empréstimo, e em volta há uma confusão de rolos de papel, maletas, selas e arreios, roupas, botas, cronômetros e outros instrumentos, caixas de provisões, caixas de beberes, camas de campanha, palha e lixo em geral. Este e o quartel-general.


Logo após minha chegada, sigo com Mr. J. B. e seu interprete, um português conhecido aqui como capitão Silvestre, para o boticário da vila, que nos fornece a refeição em uma salinha nos fundos de sua casa; um arranjo temporário enquanto se aguarda a chegada das provisões e da bagagem nos há tanto esperados carros de bois. O Senhor Ernesto, o boticário, e um indivíduo de aparência agradável e inofensiva, com cerca de trinta e cinco anos, aparentemente assolado pela praga de uma família numerosa de crianças barulhentas, agitadas e uma esposa rabugenta, pois tem um jeito atormentado e sorri tristemente quando falam com ele. É evidente que ele cresceu na estima de seus vizinhos por manter em sua propriedade o espetáculo gratuito de ingleses comendo. Havia um grupo de vagabundos diante de sua porta, evidentemente esperando por nós, exatamente como as pessoas que se agrupam diante da jaula dos carnívoros no Jardim Zoológico para ver os leões serem alimentados, pois quando entramos na casa, todos nos seguiram para o interior sujo dela e procuraram os melhores lugares para se sentarem ou se encostarem; lá nos cercaram - uma falange de olhar fixo em nós - com os chapéus na cabeça, mãos na cintura, ou metidas nos bolsos, encarando sem piscar, interrompidos apenas por freqüentes expectorações e, as vezes, nem assim. Sentamo-nos para um suprimento farto de compostos gordurosos e irreconhecíveis postas de carne carbonizadas. Perguntei a Mr. B. se esses visitantes o honravam com sua presença todo dia.

"Oh, sim; todo dia".
"Porque você não pede ao capitão Silvestre que o livre deste pesadelo?"
"Ele já lhes pediu para manterem-se afastados, mas não adiantou."


O fato era que o capitão não desejava diminuir seu séquito de admiradores. Este homem e um personagem curioso: ele fora durante muitos anos steward a bordo de navios ingleses - seu inglês e naturalmente, em conseqüência disto, deveras naval; ele não pode pronunciar uma frase sem o uso generoso de adjetivos fortes e profanos, mais notáveis por sua originalidade do que pela adequação. Ele tem uma grande fluência verbal e uma noção vívida de sua própria importância. Posso ver claramente pela maneira como é tratado por vários habitantes que ele é sem duvida considerado uma pessoa de posição elevada.

Quando Mr. B. passou por Congonhas do Campo, o capitão estava ausente. Mr. B. foi visitar um magnata local, um certo barão, para o qual trouxera cartas de apresentação; lá, para seu espanto, encontrou o capitão na maior sem-cerimônia tomando café com a família, a quem ele tinha se apresentado como um importante membro da expedição e, como tal, fizera-lhes uma visita, e, é claro, na qualidade de interprete de Mr. B., tomou um cuidado especial para não desfazer o engano das boas pessoas.

À mesa ele nos informa agora que "uma daquelas mulas esta doente de novo."
Após o jantar, solicito ao Senhor Ernesto que garanta um pouco mais de privacidade em seu estabelecimento. Ele demonstra surpresa diante deste pedido, dizendo que "o povo e muito manso" e que "é costume deles visitar a gente de fora", mas que, se não nos agradam, tentará segurá-los lá fora.


Eles são inofensivos como os campesinos broncos de olhos cravados na "dona gorda" em uma feira da nossa terra, todavia um viajante que toma sua refeição em uma estalagem no campo se sentiria muito desagradavelmente situado se o mesmo individuo invadisse o recinto da sala de café como nossos visitantes de Capela Nova; mas, por outro lado, é preciso lembrar que aqui somos alienígenas em um pais estrangeiro, onde, se certos hábitos do povo parecem estranhos e desagradáveis para nós, as inconveniências devem ser suportadas com paciência, ou, se não podemos fazê-lo, melhor seria que tivéssemos permanecido em nossa terra. Essas pessoas não tinham a intençãao de ofender e nunca imaginaram que estavam sendo intrometidas, ou que sua presença pudesse não ser aceitável.

Não consigo coletar informações históricas sobre esta vila, pois a maior parte dos acontecimentos da história de Minas Gerais ocorreu em uma ampla zona que se estende de Ouro Preto para o sudoeste. Não ha prédios muito velhos na vila, mesmo a igreja ainda não tem cem anos de idade. A população e estimada em torno de 2.000 habitantes, o que excede em muito a realidade aparente. Suas amplas ruas se alastram por uma grande extensão; do topo do morro, uma delas segue por quase uma milha em direção ao Paraopeba, a metade final sendo uma série de casas destacadas, cada uma erguendo-se em meio ao seu próprio amontoado de arvores e arbustos; não ha qualquer tentativa de se cultivarem jardins ou fazerem cercas bem acabadas e em ordem, ou sebes, ou alamedas, mas há uma vegetação descontrolada de plantas viçosas e floridas, moitas e arvores frutíferas, as últimas consistindo de jaboti cabas, mamão, goiaba, laranjas, limões, limas doces, romãs, figos, uvas, abacates, sapotis e, por toda parte, como se fosse um corretivo para o uso indiscriminado dessas frutas, a mamona.



Paralela a esta longa rua, cerca de trezentas jardas distante em direção ao sul, fica o Rio Betim, uma corrente constante de água escorrendo de uma declividade escarpada de gnaisse marrom - um motor esplendido para muitos moinhos, no entanto há apenas um pequeno (para moer milho) que utiliza sua força. Em muitas casas ha teares rústicos para tecer o algodão nativo em tecido grosseiro das Minas, que e largamente usado pelos habitantes para fazer camisas, paletós e calças e que é mesmo excelentemente macio, fresco e forte para a confecção dos dois últimos artigos. Há também umas poucas lojas para fabricação da viola (violao) nativa, ferreiros para fazer ferraduras e pregos, principalmente, alem de uns poucos artesãos, como pintores, pedreiros, carpinteiros - o ultimo e em geral um sujeito habilidoso, pois fará desde um carro de bois com suas rodas, rodas d'água rústicas, ou trabalhos de marcenaria, uma porta ou uma arca, uma janela, até a construção de uma casa ou ponte. As duas ruas principais formam um T. a intersecção sendo o topo do morro. As casas são todas térreas, construídas de adobe ou tijolos secos ao sol; algumas são caiadas, outras não; todas tem janelas sem vidraças e cobertura de telhas vermelhas, e a maior parte esta enodoada pela ação do tempo e exibe grandes manchas de adobe marrom exposto pelo reboco e caiação despencados, e são em geral decadentes e desleixadas. Há dois ou três armazéns de mercadorias secas de bom tamanho, de propriedade de brasileiros brancos ou portugueses; estes homens são bastante prósperos - quer dizer, em comparação com seus vizinhos. A igreja esta em condição tolerável, e dentro dela não ha mais de seis cores diferentes; a capela-mor contem um altar vistoso, resplandecente de douração, tecido vermelho e ornamentos de ouropel, velas, flores artificiais, imagens e pinturas de santos. Do lado de fora fica a habitual cruz das vilas mineiras, portando todos os emblemas da "Paixão" - escada, esponja, coroa, martelo, pregos, lança, etc. - e encimada por um chantecler de madeira muito lenhoso.

Durante a primeira parte da tarde, diversos dos principais habitantes visitam Mr. B. ou o Senhor Diretor, como o denominam (alguns vem de paletó preto, outros de paletó listrado de algodão mineiro); eles são bem intencionados, mas efusivos em seus protestos de afeição e disposição para ajudar, entretanto devem achar enfadonho conversar por intermédio do Capitão Silvestre. Algumas de suas traduções são muito engraçadas.

28 de fevereiro - Acompanhado por um Senhor Chico, um guia, parti por volta das dez esta manhã para uma certa Fazenda do Padre João, a dezesseis milhas de distância, onde disseram-me que eu poderia conseguir aposentos para minha residência durante os levantamentos do distrito. Um dia de verão claro, ensolarado e cheio de brisas saudou-nos quando começamos a descida do alto da vila; em volta do morro há vales de arvoredo e matagal, rochas velhas e novas, para além das quais há montanhas e montanhas, grandes e pequenas, algumas verde-escuras devido as florestas, outras com as manchas de verdura mais clara das clareiras antigas e recentes. A descida é dura e íngreme; a estrada tem 100 pés de largura, mas e cheia de buracos fundos, blocos de pedra, toras de madeira, moitas de capim e mato; varias violas soam nas casas de pau-a-pique - os habitantes espiam curiosos quando passamos; ao fundo há uns poucos ranchos grandes de tropeiros, alguns vazios, outros com tropas de mulas, onde os homens estão consertando rédeas e os arrieiros endireitando pregos ou ferrando os burros.

Esses tropeiros são gente muito animada, estão sempre cantando suas canções em tom agudo, no acampamento ou na estrada, e esta ocasião não e diferente, pois rudes estribilhos improvisados nos chegam aos ouvidos quando passamos, sobre seus amores em Capela Nova ou outras paradas favoritas, ou observações pessoais sobre a nossa própria aparência. Agora subimos um longo morro de capim e mato e árvores esparsas por uma longa estrada acidentada de terra vermelho-fogo; chegando ao topo e olhando para trás, obtemos uma vista encantadora e pitoresca da vila e região circunvizinha. As águas espumantes do Rio Betim estão luzindo ao sol enquanto se atiram sobre a superfície marrom-escura das rochas em linhas de branco-neve; as casas brancas e os telhados vermelhos da vila, os diversos tons de verdura, o capim brilhante, os verdes ricamente variados das arvores e os verdes escuros e sombrios dos morros e serras cobertos de florestas ao fundo, com o céu claro e limpo no alto, e toda a natureza, os morros, as casas, as pedras e as arvores, brilhando na luz radiante, formam uma imagem vívida e esplêndida de forma e cor. Todos os detalhes estão minuciosa e nitidamente definidos mesmo a distância, as sombras das nuvens que passam caem aqui e ali sobre montes e vales, deslizando pelas encostas, cruzando os vales e ascendendo outros montes, dando suavidade e vida a cena.

Prosseguindo, logo entramos por uma longa extensão de floresta de segunda vegetação, que se estende por milhas, e cobre tanto morros como várzeas; muitas outras estradas se ramificam a partir da nossa e intrigariam terrivelmente um estranho, pois não ha tabuletas amigas indicando o caminho; nenhum mapa da região pode ser obtido, mas meu guia poupa-me muita especulação. Finalmente chegamos a nosso destino, sem que tenhamos passado por uma única habitação desde que deixamos Capela Nova. A fazenda fica próxima do Rio Paraopeba e, como a fazenda dos Mota, é uma velha relíquia de tempos passados, mais prósperos. Ha uma casa grande, amplas construções adjuntas, moenda de cana-de-açúcar e monjolo, currais e chiqueiros, mas tudo é velho, dilapidado e em ruínas; há um ar de solidão nela, que é tudo, menos animador, mas sua posição e conveniente para uma residência provisória, e isto basta.

O Senhor Chico bate palmas e grita "O de casa"; ele tem de repetir varias vezes antes que um homem quase branco, grenhudo e desleixado apareça a porta e pergunte "O que e?" Chico o cumprimenta como Senhor João, pergunta-lhe como vai indo e como vai a família, e passa a explicar a natureza das minhas necessidades. O Senhor João permanece o tempo todo com os olhos pregados em mim, como se eu fosse um ser de outro mundo. Depois eu começo a dar mais detalhes sobre o objetivo de minha visita, mas o Senhor João olha espantado para o Chico e diz: "O que e que ele esta dizendo? Não consigo entendê-lo." Meu guia, que, naturalmente, só fala o português, tem de explicar repetindo minhas palavras, e os sons me parecem semelhantes, embora, sem duvida, uma leve diferença de sotaque possa ter confundido a cabeça dura do Senhor João. Entretanto, depois de um tempo, a coisa foi melhorando e seguiu-se o seguinte dialogo.

"Oh! meu Deus! Não sei o que fazer. Quantos cômodos o senhor quer?"

"Preciso de dois; mas se o senhor não puder arranjar dois, eu me contentarei com um."

“Oh! meu Deus! meu Deus! Nao sei o que fazer." (Depois de uma pausa, ele abre a porta que dá para o interior enegrecido de uma sala, na extremidade da varanda da casa.)

"Este aqui serve?"

"Se o senhor não tiver um melhor, sim; mas quero que ele seja esvaziado, limpo e caiado." (Ele olhou para mim com surpresa, como se dissesse, ora, você e um homem muito esquisito.)

"Bem," continuo "supondo que eu pague para que este cômodo se torne habitável, quanto você cobraria pelo aluguel, serviço e comida?"(~Um olhar perplexo, e Chico tem de repetir a questão.)

"Uai! Ora! meu Deus! Comida para ele - para ele! Ora! " (Ele coça a cabeça e fica imerso em profunda reflexão); finalmente diz que preferia que eu arranjasse um cozinheiro. Explico que quero estar livre de toda preocupação desse tipo, e que qualquer cozinheiro que eu pudesse obter teria apenas de providenciar o material habitual e prepará-lo conforme o uso da terra, como ele já estava habituado. De novo, Chico tem de explicar e reexplicar; mais uma vez o homem delibera profundamente, depois, dizendo que vai consultar sua esposa, retira-se para dentro de casa, deixando-nos ainda montados, sem convite para apear. Depois de alguma demora, ele volta, parecendo ainda mais indeciso.

"Quantos outros virão?".

"Eu peço apenas que providencie para mim."

"Mas", com um grunhido, "você vai comer demais."

"Meu amigo, confesso que tenho um apetite muito saudável, mas não acredito que exceda o de qualquer matuto comum."

Ele olha incrédulo, diz "qual!", hesita, coça a cabeça, medita profundamente e, depois, levantando os olhos de súbito, aponta para uma velha, lúgubre senzala quase desabando - lugar que só serve para ser queimado, cheio de mofo, umidade, apodrecido e enegrecido; não ha folhas nas janelas, as portas se apóiam nas paredes do lado de fora quando existem, o interior e freqüentado por sapos, cogumelos e lagartos cinzentos. Olhei para ele para verificar se estaria brincando, mas não há um átomo de humor naquela face apática.

"Não, eu quero o cômodo que o senhor me mostrou primeiro, e como está ficando tarde, por favor, diga-me, o mais depressa possível, sim ou não, e quanto o senhor pede por ele."

"Ora! não tenha tanta pressa; você deixa a gente agitada; quantos vem com você, mesmo?"

"Só eu." (Repeti novamente o que desejava, com toda a precisão e expliquei-Ihe qual seria a despesa provável, mas ele só parecia cada vez mais confuso e tornou a se retirar para uma consulta. Quando saiu, propôs um outro cômodo melhor, o qual aprovei; depois parou para pensar e lembrou-se de que não poderia cedê-lo.)

"Muito bem, deixe-me tomar o outro, então."

"Oh, não consigo me decidir; você tem certeza de que aqueles lá fora não servem?"

"E claro que não; diga logo quanto você quer pelo primeiro."

"Ora! homem! você vai querer pelo menos quatro frangos por dia".

"Não, não creio que daria conta disso tudo; já expliquei ao senhor do que é que eu necessito."

"Mas o feijão e tão caro."

"Não importa."

"E depois o senhor vai querer pão."

"Não, não vou."

"Agora não e época de batatas."

"Não tem importância. Quanto?"

"Você não vai gostar da comida e –

"Quanto?"

"Nós não entendemos a sua

"Quanto?"

"Eu não sei o que fazer e -"

"Quanto?"

"Ora! diabo, homem! deixe a pessoa falar; bem, eu irei a Capela Nova amanhã e Ihe darei uma resposta."

"Muito bem, se você quer fazer uma viagem desnecessária de dezesseis milhas, quando poderia dar-me uma resposta agora mesmo."

"Adeus! ate amanha."

O sol está baixo no horizonte, e temos uma longa estrada escura pela frente. Chico aponta para as nuvens negras que se amontoam sobre os picos distantes da Serra e diz que teremos um temporal antes que possamos chegar; portanto tocamos os animais a passo acelerado. Esta quente e abafado, não há um sopro de ar, as folhas dos topos das arvores estão imóveis na calmaria antes da tempestade. O velho burro cinzento evidentemente não se recuperou de sua doença de dois dias atrás, pois vai ficando preguiçoso e responde com grunhidos e coices a aplicação da espora, anda cada vez mais devagar, a medida que a estrada vai ficando mais e mais escura; por sorte, assim que as luzes esmaecestes do dia desaparecem, chegamos ao topo de um morro e vemos as casas de Capela Nova a distancia; mais além, vemos o fundo da paisagem já envolto em nevoa cinzenta, e densas massas de nuvens negras estão descarregando seus líquidos em fios longos, largos e oblíquos; o trovão já reboa e os raios são intensos - golfadas de vento sopram em nossas faces, as nuvens se espalham sobre nossas cabeças caem grandes gotas -, ouve-se um rugido distante - ela se aproxima rapidamente -, um terrível clarão - um ensurdecedor estrepito da artilharia celeste -, uma rajada violenta de vento frio, um rugido, e a tempestade esta sobre nós; a escuridão cai simultaneamente e a estrada fica imersa na obscuridade circundante. Agora temos de confiar na sagacidade das mulas; o cinzento sente-se claramente refeito com a chuva e trilha seu caminho sem erro.

Lá vamos nos em frente, na escuridão, para onde, é impossível dizer, não fosse pelos clarões ocasionais do relampago que momentaneamente iluminam a estrada e a cena, mostrando-nos escuras massas de mato e cascatas cintilantes de água e arvores de aparência sobrenatural estendendo seus galhos sobre a estrada como espectros sombrios.

A descida do morro e uma serie de cataratas espumejantes; os minutos parecem horas; seguimos chapinhando. Freqüentemente, a sela desaparece sob mim, quando a mula escorrega em uma vala ou buraco fundos; há raios por toda parte, e tão brilhantes que parecem coriscar sobre meu impermeável. Agora estamos no sopé da montanha, patinhando em alguma corrente funda. Grito para o Chico, perguntando onde estamos, mas mal posso ouvi-lo em meio ao alarido - o borrifar, gorgolhar e rugir das águas, os estalos dos troncos e o farfalhar de arvores e galhos ao serem sacudidos violentamente pela fúria do vento e da chuva. Não posso ver minha Mao a duas polegadas de meu rosto, mas ainda assim a mula prossegue sem parar; as rédeas só tem utilidade para ajudá-la quando ela se afunda nos numerosos buracos. Parece um tempo interminável, mas finalmente começamos a subir o que parece o curso de um rio, pois lutamos em meio a canais de água que jorram e borbotam sobre penedos, despencando em buracos. A mula e como um navio em uma tempestade, navegando tanto com vento de proa como de costado, rola de cá para láa, da guinadas para a frente, depois sobe os degraus. Certamente estamos em meio a arrebentação, pois um farol aparece com uma luz constante. Não, e algum bom samaritano em uma casa a beira da estrada, mostrando-nos uma luz, pois eles ouvem o som dos viajantes que passam; agora outras luzes aparecem em outras portas com o mesmo objetivo; elas são suficientes para mostrar que nós ainda estamos em terra, embora eu estivesse antes completamente a deriva quanto ao meu paradeiro. Reconheço que estamos subindo a rua principal de Capela Nova e agora se pode perceber como uma estrada destas pode criar tais valas e buracos, pois por toda parte as luzes iluminam enxurradas que se precipitam ladeira abaixo. Finalmente chegamos em casa cansados, doloridos e famintos, para descobrir que meu generoso anfitrião não providenciou qualquer jantar ou ceia para mim. Atravesso pesadamente a rua escura e lamacenta e acordo o Senhor Ernesto. Ainda não são oito horas da noite, mas ele e a família já estão todos deitados; entretanto os brados imperativos da natureza tornam o homem inconsiderado, e o gentil boticário abre uma janela, quando então sua luz se apaga imediatamente.

"Quem e?" grita ele.

"Doutor Diogo morrendo de fome".

Ele abre a porta e acende outra luz. "Ora! Senhor Doutor, o que e que o senhor está fazendo aqui a esta hora da noite?"

"Senhor Ernesto, se o senhor não me arrumar alguma coisa de comer imediatamente, as conseqüências serão serias. Estou gelado, molhado, faminto e cansado".

Alguns biscoitos, sardinhas e cerveja Bass são retiradas de entre as drogas das prateleiras de sua loja, e ele expressa seu pesar por Mr. B. não ter lhe dito para deixar alguma coisa para mim, pois ele não sabia que meu retorno era esperado.

1º de março - Domingo de manha. Realmente a vila apresenta uma certa aparência respeitável de domingo . A tempestade passou há muito , o dia está claro e cintilante, há um cheiro de frescor no ar e o lugar parece mais limpo, como se tivesse passado por uma faxina de noite de sábado. Há um movimento inusitado nas ruas, pois em lugar da aparência deserta habitual, elas agora são animadas por grupos de camponeses vestidos com suas melhores roupas, que vem assistir a missa matinal; eles vem a cavalo, sós ou de garupa, a mulher montada atrás do homem, ou vem a pé; muitas das mulheres trajam a típica e antiquada capa preta de Minas, que dá a velhas e jovens a mesma aparência de anciãs; os homens estão todos vestidos com asseio, com paletós de algodão claro ou pretos. Muitos vieram a pé de distancias consideráveis e, ao se aproximarem da vila, tanto homens como mulheres param para calcar os sapatos, reassentar os cachos oleosos e se "aprontar" de todos os modos antes de entrar na High Street de Capela Nova.

Ao se observarem os rostos dos camponeses que passam, muitas expressões boas, saudáveis, honestas e simples são vistas; mas também muitos semblantes pálidos, cabelos longos e grudados, untados com sebo derretido, a tez denotando dispepsia causada pelo consumo excessivo de alimentos gordurosos e indigestos, excesso de fumo, de bebida e de vida ociosa; mas alguns dos fazendeiros são sujeitos joviais e vigorosos. Muitos se dirigem para as casas de amigos, as mulheres todas desaparecem igreja ou casas adentro, os homens se agrupam nos armazéns e vendas que estão sempre abertos todos os dias. O sininho rachado da igreja martela furiosamente, em vez de repicar, e os devotos se reúnem; as mulheres ocupam o interior e se acocoram sobre o chão ladrilhado, os homens se congregam em torno das portas e ao longo das paredes. Um velho padre entoa o serviço com sua voz nasalada de taquara rachada; a parte musical e executada pelas mulheres em tons dolorosamente altos, assistidas pela orquestra de dois violinos, um cornetim, trombone e tambor; mas e tudo bem organizado, e talvez conduzido com mais sinceridade do que muitos ofícios dominicais em nossa terra. Acabada a missa, alguns vão para casa, outros vão visitar amigos da vila, e muitos dos homens vão jogar. Afinal de contas, que benção deve ser esta pequena mudança para as pobres mulheres, trancadas como elas vivem, sem qualquer comunicação com estranhos e enterradas em tanta solidão de floresta e mato!

Quando voltei, encontrei o Senhor João esperando por mim, naturalmente com o chapéu na cabeça - que o povo da roça quase nunca se lembra de remover ao entrar em uma casa, todavia o levantam quase sempre ao serem cumprimentados ao ar livre.

"Como e, Senhor João, tomou uma decisão?"

Ele recomeçou com uma serie de objeções e dificuldades, que eu interrompi imediatamente, informando-lhe que, como eu tinha alguns jornais para examinar, não estava com nenhuma pressa, mas que, quando ele estivesse certo de sua resposta, viesse me participar. Ele permaneceu em perfeito silêncio por bem um quarto de hora, as mãos inquietas mexendo aqui e ali, alternadamente coçando a cabeça e olhando para mim; por fim ele disse:

"Senhor! "

"Como é, esta pronto?"

"Eu andei pensando nesta questão."

"E evidente - e dai?"

"Acho que o senhor devia pagar 400 mil reis por mês". (cerca de £40)

"O que? 400 mil-réis por mês? Ora, você nunca viu tanto dinheiro em sua vida!"

"Pode ser que não; mas eu sou um homem pobre, e dinheiro não e problema para o senhor - dá na mesma se tiver de pagar 4 ou 400."

O Senhor João logo partiu mais triste e mais sábio do que chegara, talvez pensando em como eram mesmo misteriosos os costumes desses ingleses.

Ao jantar, Ernesto nos livrara de nossos visitantes, e comemos em paz. Ele então me falou de outra localidade, a seis milhas de distância, onde achava que eu poderia obter acomodações confortáveis, e prometeu ir ate lá comigo na manha seguinte. Ficou combinado, e partimos no dia seguinte a sua procura; ao passar pelos morros e vales que atravessáramos na escuridão de sábado à noite, não pude deixar de sentir admiração pela inteligência ou instinto da mula, pois achei a estrada péssima já á luz do dia, especialmente uma ponte cheia de buracos sobre um riacho.

Uma cavalgada agradável por duas ou três cadeias de montes enflorestados, que correm paralelamente ao curso do rio, levou-me finalmente a uma fazenda de aparência confortável as suas margens.

A casa e outras construções eram todas velhas, mas em boa condição. Sob uma varanda em frente a casa, encontrei um velho forte, saudável e vigoroso, porem reservado, de cerca de 65 anos de idade. Ele imediatamente nos convidou a "apear", e quando lhe expliquei o que queria, chamou sua esposa, uma viçosa mulata clara de rosto agradável; depois de deliberarem juntos, eles me mostraram um cômodo agradável no interior da casa, prometeram mandar limpa-lo e caiá-lo e fornecer-me alimentação e roupa lavada por 40 mil-reis por mês. Fiquei bastante satisfeito e contente com o arranjo e decidi ficar e providenciar para que os defeitos, estragos e deteriorações fossem reparados imediatamente, embora até minha bagagem de estrada estivesse em São José. Requisitei a Ernesto que mandasse vir o Senhor Chico imediatamente, pois ele estava disposto a ficar a meu serviço. Três negros foram também contratados do meu senhorio, Senhor Joaquim da Silva, a 35 mil-reis por mês cada, os quais foram postos incontinenti a trabalhar no meu quarto. Todos os moradores se reuniram para assistir a cena inusitada de uma boa faxina; os negros criaram alento e trabalharam bem, e ao por-do-sol, o quarto estava limpo e reformado; móveis singelos foram colocados nele e pude contemplar o que seria o meu lar por varias semanas.

A noitinha chegou meu novo empregado, Chico, trazendo sua provisão por uma semana, uma sacola de carne-seca e farinha de milho. Acho que foi um bom negócio contratar este homem; ele é quase branco e particularmente bem apessoado, com cerca de vinte e cinco anos; seus modos são muito cativantes e corteses; ele e esbelto, gracioso, ativo e vigoroso, e, durante todo o tempo em que permaneceu comigo, achei-o perfeitamente confiável e fidedigno, e nem uma vez furtou-se a suas obrigações.

(Ilustrações de FABIANA MARTINI LOPES)

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